terça-feira, 29 de novembro de 2011

O PRINCIPIO DO FIM

Antes de dar inicio aos temas que pretendo abordar, vou deixar aqui algo da minha infância, nomeadamente o local de nascimento, regime político da época, e ensino primário.
Ao longo dos anos a sociedade viu perder princípios fundamentais, que acabaram por ser prejudiciais para a dita liberdade, tantas vezes prometida, mas mal conseguida…

         Estávamos em época Natalícia. Por cerca das 06H30 do dia 26 de Dezembro do ano de 1960, num dia que prometia ser muito frio, nascia numa casa humilde no lugar do Bairro da freguesia de Paços das terras de Monte Longo, um menino a quem puseram o nome de MANUEL. Era o primeiro filho de um jovem casal, de fracos recursos financeiros, mas com muito amor para dar.
         Era uma época em que o país era governado sob um regime fascista, denominado por “Estado Novo”. Não havia liberdade de expressão e as famílias viviam num clima de medo, submissão e de miséria.
Fui bebé e menino como tantos outros. Eis que chegou a idade escolar. Uma vida nova, um começo de novas amizades para o futuro.
         Recordo agora aquele primeiro dia. Era o primeiro dia de uma aprendizagem contínua. Estávamos nos princípios do Mês de Setembro. Saí de casa bem cedinho e levava ao ombro uma sacola de pano, feita pela minha mãe “era um luxo para a época”. Lá dentro, a lousa e o lápis, uma “sebenta” e a caneta de aparo e ainda o mata-borrão de cor laranja. Depois de ter percorrido cerca de três km a pé, na companhia de minha mãe para me ensinar o caminho, cheguei á escola.
 Era a escola da Boavista, no primeiro andar de uma casa de pedra, onde por baixo alguém, que ainda hoje conheço ali habitava. Subi as escadas entre barulho de outros meninos. Para mim e outros que pela primeira vez enfrentavam uma situação tão diferente daquela a que estávamos habituados, tínhamos estampado na cara o medo e a vergonha. Outros limitavam-se a olhar com cara de gozo e de sabichões para os recém-chegados. Entramos, era uma sala enorme cheia de “carteiras” alinhadas e com soalho de madeira a qual rangia ao ser pisada. A professora mandava sentar na frente os mais novos e os mais velhos ficavam nas carteiras mais atrás. Mesmo ao fundo da sala existiam três ou quatro carteiras, mais separadas, onde se sentaram os mais velhos, “repetentes” e com mais de dez anos de idade. “ Aí ficam os burros”, dizia a professora com ar de troça.
Ali fiquei sentado na primeira carteira da frente, com outro menino que nunca tinha visto e trocávamos olhares envergonhados. Mesmo na nossa frente estava a secretaria da professora colocada num enorme estrado de madeira. Atrás e ao centro era bem visível um quadro com a fotografia do “Salazar”. Logo ao lado um enorme quadro preto, uma esponja e vários gizes com cor branca. Do outro lado o mapa de Portugal Continental e o mapa de Portugal Insular e ultramarino. Ao canto da sala era bem visível a bandeira Nacional e ao centro um crucifixo.
Estava nervoso e acabei por meter o dedo no pequeno buraco redondo de uma coisa branca que estava encaixada ao cimo da carteira. Fiquei com o dedo pintado de azul, era o tinteiro, que tantas vezes serviu para meter a pena, para desenharmos as letras na sebenta e construir as primeiras palavras.
         A professora era uma jovem, que começou por elogiar a minha sacola. Tão bem feitinha… dizia ela. Não me lembro do seu nome, mas recordo que era uma jovem elegante e aparentava vestir bem. Tinha pela frente muito trabalho… ensinar quarenta ou mais alunos desde a primeira á quarta classe… só mesmo há muitos anos atrás. Hoje em dia era impossível.
         No segundo ano tive outra professora, que me acompanhou até ao exame da quarta classe. Era loira e má, ficou a ser conhecida pela professora de “rabo-de-cavalo”. Ainda hoje, por vezes tenho impressão que me cruzo com ela nas ruas da cidade. É ela, de certeza, se não é… já estive tentado em perguntar, talvez um dia. Era bem mazinha, se bem que da minha parte não tenho muita razão de queixa. Mas alguns meninos, hoje bem crescidinhos, ainda devem ter as mãos a arder de tantas reguadas “bolos” que levavam nas mãos. A cana de foguete, já rachada de tanto bater nas nossas cabeças, sempre dava jeito para matar os piolhos.
         O pior era o percurso para a escola. Chegava a levar uma hora a chegar, entre paragens e brincadeiras. No regresso corríamos a sete pés, pois por vezes éramos corridos á pedrada por grupos rivais. Aqui aprendi a dialogar e a saber mediar os conflitos. Facto este que me valeu, e se bem me recordo, talvez ser o único que nunca chegou a casa com a cabeça rachada. O Inverno era o pior inimigo, o frio, o vento e a chuva que teimava cair. Não me lembro de guarda chuvas, mas sim de uma saca de serapilheira, que transformava num capuz e cobria a cabeça. Era assim para todos, ou quase todos, pois havia quem nem a dita saca tinha para o seu agasalho.
         Muitas das vezes não chegávamos á escola, pois ficávamos pelo caminho. Se bem que a expressão utilizada é “amoutavamo-nos”. Este procedimento valia a chamada dos nossos pais á escola e o respectivo castigo, quer em casa quer na escola. Apesar dos castigos, não serem agradáveis, principalmente os da professora, é certo que o acto se repetia.
         Os anos passaram. Tinha talvez dez ou onze anos e chegou o dia mais esperado. O exame da quarta classe. Foi feito na Escola Conde Ferreira. Entre várias professoras e alunos, sujeito a provas escritas e orais, sendo que tive de ir ao mapa e indicar os principais rios e linhas de caminhos-de-ferro,  que tínhamos de saber na ponta da língua. Recebi o primeiro diploma que ainda hoje guardo com orgulho. Era o fim do ciclo escolar obrigatório, onde quase todos os alunos que me acompanharam ao longo desses anos terminaram por aqui os estudos e foram trabalhar.
         Entre sofrimentos, desesperos e alegrias, valeu a pena este percurso. Conheci outros meninos, com os quais ainda hoje me relaciono e recordamos as asneiras e brincadeiras feitas. Esta aprendizagem foi o trampolim para aquilo que sou nos dias de hoje.
         Uma lembrança que ficou, é que inúmeras vezes se cantava naquela escola o “Hino Nacional” Éramos crianças mas tínhamos respeito e um grande sentimento de alegria que nos causava arrepios sempre que cantávamos o nosso Hino e não havia menino que não soubesse cantar.
         … Assim se vai perdendo a nossa identidade…

Um comentário:

  1. Adorei!!

    "A lembrança da infância é o único sonho real que nos resta na fase madura da vida, os demais são meras utopias."

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