Ao
 longo dos anos a sociedade viu perder princípios fundamentais, que 
acabaram por ser prejudiciais para a dita liberdade, tantas vezes 
prometida, mas mal conseguida…
         Estávamos
 em época Natalícia. Por cerca das 06H30 do dia 26 de Dezembro do ano de
 1960, num dia que prometia ser muito frio, nascia numa casa humilde no 
lugar do Bairro da freguesia de Paços das terras de Monte Longo, um 
menino a quem puseram o nome de MANUEL. Era o primeiro filho de um jovem
 casal, de fracos recursos financeiros, mas com muito amor para dar. 
        
 Era uma época em que o país era governado sob um regime fascista, 
denominado por “Estado Novo”. Não havia liberdade de expressão e as 
famílias viviam num clima de medo, submissão e de miséria.
Fui bebé e menino como tantos outros. Eis que chegou a idade escolar. Uma vida nova, um começo de novas amizades para o futuro.
        
 Recordo agora aquele primeiro dia. Era o primeiro dia de uma 
aprendizagem contínua. Estávamos nos princípios do Mês de Setembro. Saí 
de casa bem cedinho e levava ao ombro uma sacola de pano, feita pela 
minha mãe “era um luxo para a época”. Lá dentro, a lousa e o lápis, uma “sebenta”
 e a caneta de aparo e ainda o mata-borrão de cor laranja. Depois de ter
 percorrido cerca de três km a pé, na companhia de minha mãe para me 
ensinar o caminho, cheguei á escola.
 Era
 a escola da Boavista, no primeiro andar de uma casa de pedra, onde por 
baixo alguém, que ainda hoje conheço ali habitava. Subi as escadas entre
 barulho de outros meninos. Para mim e outros que pela primeira vez 
enfrentavam uma situação tão diferente daquela a que estávamos 
habituados, tínhamos estampado na cara o medo e a vergonha. Outros 
limitavam-se a olhar com cara de gozo e de sabichões para os 
recém-chegados. Entramos, era uma sala enorme cheia de “carteiras” 
alinhadas e com soalho de madeira a qual rangia ao ser pisada. A 
professora mandava sentar na frente os mais novos e os mais velhos 
ficavam nas carteiras mais atrás. Mesmo ao fundo da sala existiam três 
ou quatro carteiras, mais separadas, onde se sentaram os mais velhos, 
“repetentes” e com mais de dez anos de idade. “ Aí ficam os burros”, 
dizia a professora com ar de troça.
Ali
 fiquei sentado na primeira carteira da frente, com outro menino que 
nunca tinha visto e trocávamos olhares envergonhados. Mesmo na nossa 
frente estava a secretaria da professora colocada num enorme estrado de 
madeira. Atrás e ao centro era bem visível um quadro com a fotografia do
 “Salazar”. Logo ao lado um enorme quadro preto, uma esponja e vários 
gizes com cor branca. Do outro lado o mapa de Portugal Continental e o 
mapa de Portugal Insular e ultramarino. Ao canto da sala era bem visível
 a bandeira Nacional e ao centro um crucifixo.
Estava
 nervoso e acabei por meter o dedo no pequeno buraco redondo de uma 
coisa branca que estava encaixada ao cimo da carteira. Fiquei com o dedo
 pintado de azul, era o tinteiro, que tantas vezes serviu para meter a 
pena, para desenharmos as letras na sebenta e construir as primeiras 
palavras.
        
 A professora era uma jovem, que começou por elogiar a minha sacola. Tão
 bem feitinha… dizia ela. Não me lembro do seu nome, mas recordo que era
 uma jovem elegante e aparentava vestir bem. Tinha pela frente muito 
trabalho… ensinar quarenta ou mais alunos desde a primeira á quarta 
classe… só mesmo há muitos anos atrás. Hoje em dia era impossível. 
        
 No segundo ano tive outra professora, que me acompanhou até ao exame da
 quarta classe. Era loira e má, ficou a ser conhecida pela professora de
 “rabo-de-cavalo”. Ainda hoje, por vezes tenho impressão que me cruzo 
com ela nas ruas da cidade. É ela, de certeza, se não é… já estive 
tentado em perguntar, talvez um dia. Era bem mazinha, se bem que da 
minha parte não tenho muita razão de queixa. Mas alguns meninos, hoje 
bem crescidinhos, ainda devem ter as mãos a arder de tantas reguadas 
“bolos” que levavam nas mãos. A cana de foguete, já rachada de tanto 
bater nas nossas cabeças, sempre dava jeito para matar os piolhos.
        
 O pior era o percurso para a escola. Chegava a levar uma hora a chegar,
 entre paragens e brincadeiras. No regresso corríamos a sete pés, pois 
por vezes éramos corridos á pedrada por grupos rivais. Aqui aprendi a 
dialogar e a saber mediar os conflitos. Facto este que me valeu, e se 
bem me recordo, talvez ser o único que nunca chegou a casa com a cabeça 
rachada. O Inverno era o pior inimigo, o frio, o vento e a chuva que 
teimava cair. Não me lembro de guarda chuvas, mas sim de uma saca de 
serapilheira, que transformava num capuz e cobria a cabeça. Era assim 
para todos, ou quase todos, pois havia quem nem a dita saca tinha para o
 seu agasalho.
        
 Muitas das vezes não chegávamos á escola, pois ficávamos pelo caminho. 
Se bem que a expressão utilizada é “amoutavamo-nos”. Este procedimento 
valia a chamada dos nossos pais á escola e o respectivo castigo, quer em
 casa quer na escola. Apesar dos castigos, não serem agradáveis, 
principalmente os da professora, é certo que o acto se repetia.
        
 Os anos passaram. Tinha talvez dez ou onze anos e chegou o dia mais 
esperado. O exame da quarta classe. Foi feito na Escola Conde Ferreira. 
Entre várias professoras e alunos, sujeito a provas escritas e orais, 
sendo que tive de ir ao mapa e indicar os principais rios e linhas de 
caminhos-de-ferro,  que tínhamos de saber na ponta da língua. Recebi o 
primeiro diploma que ainda hoje guardo com orgulho. Era o fim do ciclo 
escolar obrigatório, onde quase todos os alunos que me acompanharam ao 
longo desses anos terminaram por aqui os estudos e foram trabalhar.
        
 Entre sofrimentos, desesperos e alegrias, valeu a pena este percurso. 
Conheci outros meninos, com os quais ainda hoje me relaciono e 
recordamos as asneiras e brincadeiras feitas. Esta aprendizagem foi o 
trampolim para aquilo que sou nos dias de hoje. 
        
 Uma lembrança que ficou, é que inúmeras vezes se cantava naquela escola
 o “Hino Nacional” Éramos crianças mas tínhamos respeito e um grande 
sentimento de alegria que nos causava arrepios sempre que cantávamos o 
nosso Hino e não havia menino que não soubesse cantar.
         … Assim se vai perdendo a nossa identidade…

Adorei!!
ResponderExcluir"A lembrança da infância é o único sonho real que nos resta na fase madura da vida, os demais são meras utopias."